Sim, o mundo anda chato.
E isso não tem absolutamente nada a ver com se sentir desconfortável com o direito de qualquer minoria.
Eu entendo que a geração Z acredite que o big bang tenha acontecido em 1998, entre um intervalo e outro do Fantástico. Mas a verdade é que a gente vem evoluindo com as minorias há mais de cento e cinquenta anos. Gays, negros e mulheres vêm gradativamente melhorando suas posições sociais desde o tempo em que lacração ainda significava apenas fechar ou isolar alguma coisa.
Nada disso começou com o BuzzFeed. Nem com o Obama. Nem com a Beyoncé. Nem com o PSOL. Nem com toda aquela gente multimilionária de Hollywood. Nem com a Marcia Tiburi. Nem com qualquer pessoa que não tenha idade suficiente pra ter visto os capítulos originais de O Fantástico Mundo de Bobby na tv.
Gays, negros e mulheres vêm paulatinamente adquirindo tratos sociais melhores ao menos desde a popularização dos manuais de alfabetização no final do século dezoito. Foi uma longa corrida até aqui. Duríssima. Contra os nossos próprios demônios. E ainda existem barreiras de aceitação a serem superadas.
Mas o mundo não anda um lugar chato porque gente violenta deveria ser colocada atrás do xilindró. Nem porque as mulheres conquistaram o direito de sair de casa. Ou porque é extremamente inoportuno ter que encarar todos os dias gente tentando te encoxar no busão.
O mundo anda chato porque todas essas batalhas já não são mais travadas nas delegacias e nos tribunais, mas nos dicionários e na publicidade. Anda chato porque sobra politics e falta policy. Porque sobra fanfic e falta autocrítica. Porque o monopólio político da força de alguns grupos ideológicos não passa de uma polícia moralista mequetrefe disposta a silenciar e censurar qualquer indivíduo que ouse navegar por outras paragens.
O mundo anda chato porque a gente é obrigado a disfarçar que peças medíocres de propaganda política são grandes obras de arte. Porque os discursos de premiação são hoje mais importantes que os filmes. Porque representatividade virou o santo graal e já ultrapassou em relevância o quesito talento há muito tempo. Porque nós deixamos de nos preocupar em dar destaque a qualquer resquício de sofisticação criativa na nossa produção cultural para dar palanque a obras descartáveis construídas com o único intuito de “provocar o debate”.
O mundo anda chato porque viramos todos indivíduos artificiais tentando fingir uns para os outros que somos seres humanos melhores do que somos de verdade. Porque nos entupimos de filtros, e de censura, e de controle, e de condescendência. Porque absolutamente qualquer coisa pode ser encarada como ofensiva.
Aqui mesmo nessa rede social. Não é preciso muito tempo logado pra perceber. Há sempre um dedo na cara em riste pra alguém ou um grupo. Nunca falta algo a denunciar: uma apropriação cultural, uma indignidade, um ato indecoroso. Tudo é bronca, reclamação, mau humor. Tudo é luta, bandeira, ideologia. Cada ação é sempre em nome de um suposto bem maior.
Nós lidamos com essas pessoas todos os dias por aqui. Gente que jura ser incapaz de cometer um ato de covardia, de vilania, de mesquinhez. Gente que jura nunca ter cometido um pecado na vida. Todos semideuses ofendidíssimos. Todos digníssimos seres de luz trancafiados no confortável papel de vítima. Todos membros do inegável grupo do bem, dos autointitulados salvadores do planeta.
A nossa geração é inegavelmente frágil. Da boca pra fora a gente até assume que luta, que abraça a transformação, que protesta contra tudo que tá errado no mundo. Mas a verdade é que qualquer coisa hoje em dia é capaz de nos machucar. Nós nunca estivemos tão expostos ao ridículo.
Nós condenamos o mundo a uma histeria coletiva. E é exatamente por isso que ele nunca foi tão chato.